Cinco dedos.

Os vaga-lumes da cidadela já se confundiam com as primeiras estrelas do céu, ainda tímidas com os últimos raios da grande estrela que se ia embora descansar no Japão. O Sol descansa no Japão, me diziam. Imediatamente imaginava o grande Sol descansando em uma cadeira de praia ,de óculos escuros, protegendo os olhos de si mesmo e, provavelmente, comendo sushi.

Jardineira nova, cabelos no queixo e janela no dente. Cálida lembrança quente. Calada, era eu menina. Só não calava nunca a mente. Ali, mal era eu gente, tinha um mundo meu: efervescente. A grade de metal do terraço, na verdade, um desafio para escaladoras experientes como eu. Em segredo, claro. Segredo. As crianças sabem guardar grandes segredos. A eles, têm mais apego que aos brinquedos. Com os segredos, se defendem dos medos. Inimaginável o medo, por exemplo, de que me impedissem de escalar a grade branca de ferro, o pé de siriguela, o alto do tanque, a mesa amarela.

Cheiro de mato. Barulho na cozinha: panela, prato. Televisão, Gugu fala alto, alto. Junto com as estrelas tímidas, chega manso o sereno. Assustador esse tal de sereno. Minha avó me manda correr, fugir dele, parece veneno. Deus me livre topar com esse tal de sereno. Corro pro terraço á porta. Tiara nova, blusa nova, sapato novo, combinando com a jardineira nova. Hoje, nenhuma moleca no mundo era mais bonita do que eu. Impossível. Eu tinha uma velhice nova: sinal de poder. Era meu aniversário, claro. Ganhava mais um ano de importância, quase uma adulta. A idade? Não importa, tinha a maturidade. Não falem comigo que me cansa. Tem gente que é tão criança.

As flores que voinha planta tem bolinhas de sereno (gotas de veneno!). Que tédio. Tudo é tédio até os parabéns, onde sou coroada diante de todos como uma quase adulta, muito importante. Preciso falar mais sério. Impressionante. Ele chega, devagarzinho. O vejo. O coração pula de leve. Postura, ereta. Ele que me enxergue. Ele vem sorrindo, fica na ponta dos pés para alcançar a minha enorme altura. Claro, para isso, fica de joelhos. No nível do meu rosto, me olha sorrindo.

-Eita, tinha, tá uma moça enorme, né?

Eu o encaro superior, soberana. É isso mesmo, estou enorme…

-Me dê sua mão.

Olhando-o desconfiada, estico para ele minha mão, do tamanho do seu polegar. Ele conta dedo por dedo.

– 1, 2, 3,4… Cinco!!

Começo a entender. Sorrio feliz.

-Tinha, tu completou uma mão cheinha de dedos! Uma mão todinha! Agora já vai passar pra mão de cá, ó.

E puxa minha outra mão, que eu fecho em sinal de “zero”. Olhando-o. Duvido que o sereno podia com ele. O ser mais forte da terra.

Ele compara sua mão enorme com a minha.

-Imagina quando tu completar as duas mãos? Eita que eu tô ficando velho.

E ele sorri com a idéia. Eu também. Velho? O cavaleiro vencedor do sereno?

-Tais linda, puxou ao pai. Linda.

Com o peito inflado de orgulho, prepotência, soberba, vaidade e alegria capaz de explodir 50 Sois que estivessem escondidos no Japão uma hora daquelas, me desvencilho de seus braços tentando disfarçar o sorriso orgulhoso. Eu sou linda. Eu sou velha, eu tenho uma mão intera de dedos para contar de história. Olhando minha mão como quem olha uma medalha de honra ao mérito, eu saio de perto do meu pai para sorrir escondida de alegria. E, talvez, para ele não ser atingidos pelo amor incontrolável que saia de meu coração diretamente em sua direção. Tenho que protegê-lo. São muito frágeis, os adultos. Não suportariam os segredos.

Clarice Freire.

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