Riscos.

Ela gostava de ir ao viaduto todas as noites debruçar as sandálias surradas, lá de cima, para ver os carros passando. Dalí de cima pareciam mais manchas de luz cortando o cinza do asfalto. Faziam riscos debaixo de seus pés e ela imaginava se pudesse pular em cima de um ou dois deles. Surfista de riscos de luz. Cogitava se o riscos vermelho-amarelados a levariam consigo ao seu destino desconhecido. Desconhecido, portanto, aventura. Não que Nininha não convivesse desde sempre com o que não conhecia. Sempre foi assim. Nininha não tinha altura sequer para alcançar direito o vidro fumê dos carros que faziam vento de baixo pra cima do viaduto, ventilando seus dedos, fazendo bambear nos pés duros suas havaianas azuis e brancas. Ela já sentia que conhecia de tudo da vida. Difícil era novidade, difícil era aventura. A idéia do passeio naqueles riscos iluminados a animava todas as noites dali de cima do viaduto. Dali ela sonhava em patinar nos feixes de luz esquecidos pelos carros até a terra do nunca, quem sabe. Do nunca mais ter que esperar fechar o sinal, quando os riscos de luz se transformavam nos conhecidos faróis de sempre, como tudo que Nininha já conhecia na vida.

E Nininha descia o viaduto, colocava os pés no asfalto e voltava a vender bala no sinal. Fora da terra do nunca, os riscos eram outros.

Clarice Freire

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