Lerê era um moleque daqueles que não adianta nem dar uma havaiana de presente porque ele não vai usar. Não por nada, é que não precisa. Ele já criou certo tipo de casco debaixo dos pés e qualquer coisa que não seja o chão debaixo dos dois é incômodo.
Lerê nasceu em Curva do Vento, perto de Botas Perdidas, um município ao lado de Lugar Nenhum. Daqueles lugares onde o “menino de Dinha” e o “Zé da Venda” ou “Tonho da Carne” são nome e sobrenome. Daqueles lugares em que TV ainda é a janela de casa e o folhetim se assiste sentado em uma cadeira na calçada, ao vivo, na vida de “Nininha Buchuda de Carlinhos, filho do deputado.”
Lerê trabalhou desde pequeno capinando mato, vendendo picolé , recitando cordel, carregando bolsa na feira de Curva do Vento. Por sinal, ventava muito em Curva do Vento e isso, Lerê adorava. Em dia quente, Lerê gostava de subir no pé de mato mais alto do Sítio Dona Liquinha e imaginar que estava andando de roda gigante. É que Lerê viu na TV da casa de Carlinhos, filho do deputado, um casal que rodava pra cima e pra baixo em uma dessas, toda iluminada, num vento que bagunçava seus cachecóis empacotados. Lerê pergunta:
-Carlinhos, é aonde que tem uma dessa?
-Em Paris, menino, te aqueta.
-Oxe, e é longe?
Ele não teria problema nenhum em ir a pé. Nem de sapato precisava.
-Tu sabe nadar, Lerê?
-Sei!
Lerê era o rei do açude Ventania.
-Tu ia ter que nadar um ano todinho pra chegar lá. Só chega pela água. Água do mar, visse?
Lerê, que nunca tinha visto o mar ficou preocupado. Desanimado nunca. Começou a treinar todo dia no açude Ventania. Um ano nadando, com uma jangadinha pra descansar, ele chegava na roda gigante dessa tal Paris pra sentir aquele vento gelado no rosto. Virou o sonho de Lerê, que só fazia trabalhar dia e noite pra pagar a passagem para o litoral.
Um dia, Lerê varria o resto de feira no chão e viu chegar um parque mambembe que o padre da paróquia conseguiu trazer pra semana santa. Ele ficou doido de vontade de ficar ali pra ver os brinquedos, mas tinha que ir pra hora da missa ser coroinha. O padre prometia bolacha e café se ele ajudasse e fosse um bom menino. Como era economia pra passagem, Lerê ia, pensando no mar.
Quando saiu da missa, o coração de Lerê quase parou de susto. Uma roda gigante daquelas do município de Paris estava ali, linda, mais iluminada que o céu à noite, mais colorida que a feira, mais mágica que os filmes que via de espreita na janela de Carlinhos, filho do deputado. Era gigante mesmo, cabia o mundo de Lerê todinho nela. De túnica e tudo, ignorando os gritos do pároco confuso, Lerê correu para o travesseiro, pegou tudo que tinha juntado pra ver o mar e correu para o parque.
Quando chegou na frente dela, Lerê estancou. Parou e não conseguia sair de onde estava. O operador viu o menino de túnica, cheio de moedas nas mãos que chorava sorrindo vidrado na roda e não entendeu nada.
-Ei, moleque, tu não vai subir não?
Lerê olhou para o homem sem saber por que tremia tanto nas pernas.
-Vou não.
-Por quê? Tu não tem dinheiro que só aí? Tais com medo, é?
Riu-se o operador mais curioso do que divertido.
-Dá pra ver o mar lá de cima, moço?
-Vixe, dá não. O mar tá longe demais, coroinha.
Lerê foi embora decidido.
-Ei, coroinha, dá pra ver até o município de Botas Perdidas!
O menino guardou as moedas com cuidado. Pensando no mar.
-É pouco. Eu quero ver o mundo todo rodar.
Clarice Freire