Nova (e arejada) maneira de passear e a tendência retrô.

Sandorval vivia morrendo de saudade. “No meu tempo…” era seu começo de frase favorita, que tinha sido criança em 1965 e não via sentido nessa modernidade toda. Pra ele “touch” era “oxe” e “widescreen” era nome de whisky.

Sandorval morava em um Recife sem aquecimento global e sem uma prefeitura em que a grande obra é estressar as pessoas paradas por horas no trânsito da Rosa e Silva em um calor infernal ao sol do meio dia. Mas desabafos à parte, Sandorval era daqueles que não ligava ar condicionado porque achava um absurdo ter que andar de janelas fechadas e não respirar o ar puro da cidade e o seu cheiro de mangue beat. Tão puro que rendeu a Sandorval uma asma crônica e uma tosse de cachorro que ele não se livrava nunca. “No meu tempo, isso era poético. Vocês sabem a quantidade de poetas que morreram de tuberculose?” e seguida dessa frase inicial favorita, Sandorval mostrava todos os seus conhecimentos em tudo-que-todo-mundo-já-óuviu-falar-mas-não-tem-espaço-na-memória-pra-guardar e justificava sua tosse. Poeticamente falando, claro.

O fato é que Sandorval era daqueles amantes do famoso fusquinha, queridinho dos brasileiros e nem tanto da camada de ozônio (“…de quê? No meu tempo, ninguém inventava essas histórias”) e sonhava em um mundo colorido no qual todos voltariam a morrer por seus fuscas valorizando o ar puro da cidade, (na qual a grande obra também é assustar as pessoas porque a quantidade de buracos que se cai, dando aquele salto na beira do estômago em quem dirige é assustadora. Você fica quase sem respirar pensando que essa pode ser a última vez que seu carro sente uma brisa em movimento em seu para brisa. O pobre do fusca teria que aguentar o que não é mais compatível à modernidade dos seus amortecedores). Mas desabafos à parte, Sandorval esperava ansiosamente uma maneira nova (e arejada) de passear que não fosse no ar condicionado do carro modernamente sem graça, ou no shopping, ou no cinema, ou no restaurante, na doceria, na loja de roupas, na livraria, em qualquer lugar. Sandorval via sua asma crônica se adaptar fatal e nada poeticamente a aquele vento gelado e artificial entre quatro paredes.

Um dia, Sandorval cansou e, tomado por uma inspiração de fúria eufórica (“no meu tempo, a gente tomava uma atitude!”) foi até a garagem, trabalhou dia e noite reformando seu antigo fusquinha vermelho, lembrando de um antigo anúncio da Volkswagen. Saiu por aí com a nova (e arejada) maneira de passear com seu teto solar e virou tendência. Todo mundo adora ser retrô. Sandorval, o cara que a grande obra é inspirar as pessoas. Todo mundo agora tem um desses e pode, parado no meio da rua, conversar sobre o que quiser, sem se preocupar com o calor, ou ar condicionado, ou com a hora de não chegar em casa. Vamos falar do tempo?

Clarice Freire.

Desabafo de uma recifense que, às vezes, só queria voltar ao tempo sem tantos carros na rua. Nem buraco, nem(…)

E que isso fosse no tempo dela.

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