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Resolvi escapar um pouco do estilo metidoapoetabesta desse blog.

Quem nunca pensou em não levantar de manhã cedo, imaginando como seria maravilhosamente maravilhoso simplesmente dormir o dia inteiro? Quem dorme, escapa do dia em outro lugar, como quem escapa do dia em seu fim, quando vai ao cinema e, naquela sala escura, se teletransporta para outro mundo. Escapar é bom e está na moda. Estar na moda é bom e ninguém escapa dela. Socorro! É um ciclo vicioso.

Do que fugimos, afinal?

Ou de quem.

Basta um bom gole de facebook, uma dose de twitter e pronto. Um reality mundo paralelo nos espera de braços, janelas e vidas abertas para mais uma boa fuga. Sozinho, não se fica mais sozinho. Tenho em meu quarto uma janela para o mundo que me leva ao encontro de milhares de outros mundos fantásticos. Se aprende muito rápido a estar em todos eles.

Estar consigo mesmo, não existe mais. Está completamente fora de moda.

Quem é esse tal de consigo mesmo, mesmo? Claro que já ouvi falar dele. Ele tem facebook? Vou enviar uma solicitação de amizade pra ver se ele me aceita.

No final, não adianta fugir de coisa alguma. Uma hora, se levanta da cama e o dia espera ameaçadoramente claro pela janela. “Viva-me se for capaz!” Será que eu consigo mesmo?

Consigo mesmo! Aquele cara que adicionei no facebook um dia desses. Espero sua resposta. Espero. Espero. Tic. Tac. Tic. Tac… Dez segundos já se passaram e nada. Nada.

Ainda bem que tenho outros canais e redes sociais para passear, me encher de informações e ficar por dentro da moda, não tem como escapar dela, afinal. Bruna Surfistinha está na moda…vou ao cinema hoje à noite. Levo meu smartphone só por precaução.

Caso falte energia por lá, checo meu facebook. Se consigo mesmo me aceitou, bato um papo com ele e passo o tempo até que apaguem a luz outra vez. E outra. E outra.

E o tempo passou.

Clarice Freire.

foto: Porto – Portugal.

Trivialidades.

– Será que chove?

– Eu não acredito que você está me perguntando sobre o tempo.

Silêncio.

– Porque esse desprezo por ele?

– Trivialidades.

– Trivialidade? O tempo?

– Sim. Na falta do que dizer, todos falam sobre ele.

– E porque isso o tornaria trivial?

Abrindo o pó de arroz, ela retoca o batom enquanto pensa em uma resposta.

– Porque isso é coisa de quem quer puxar conversa. O que você quer é outra coisa, não é falar sobre o tempo. Porque não vai direto ao assunto?

Ele olha a imagem no espelho do pó de arroz que o encara displicente.

– Então você sabe o que eu quero?

– Sei.

– O que é?

– A mim.

– Eu não acredito que você está falando sobre você.

– Porque esse desprezo?

– Trivialidade.

– Trivialidade? Eu?

– Sim, Na falta do que dizer, você fala de si. Isso a torna trivial. O tempo é mais importante.

– Por quê?

– Um dia você vai sumir por causa do tempo e ninguém vai se lembrar de você. Já do Tempo, todos continuarão falando. Assim como sobre a chuva. Assim como sobre o vento, que passa tão depressa. Quem é mais trivial no fim?

E um dia, ela virou pó enterrado.

No dia seguinte, sai na TV a notícia que espanta o mundo:

“Cidade é devastada por tempestade de areia”.

E até a areia, o vento e a chuva, deixaram de ser trivialidades.

Viram celebridades.

No fim,

Qualquer coisa é trivial.

Se está parado.

Foge do banal,

Até a chuva ou o vento,

Quando está em movimento.

Clarice Freire.

Discurso Colação.

Acredite. Aproveite. Passe lá. Garanta já o seu. Não perca. Você não pode perder. Aqui é o seu lugar. Ta esperando o quê? Compre já. Sai logo desse sofá. Adquira já o seu. Você não pode ficar de fora. Isso tem a sua cara. Não se esqueça de pegar o seu. Não perca tempo. Corra. Vá direto lá. Eu vou repetir pra você não esquecer: Acredite. Aproveite. E não é só isso. Não perca tempo e corra. Garanta já o seu lugar.

Convencemos. Não se pode negar que, de fato, convencemos. Com tantos imperativos e persuasivos é impossível comprar um só do que quer que passe por nossas mãos ou mentes criativas, não é verdade? Olha só. Aqui estou eu vendendo de novo. Provando com argumentos intrínsecos que somos bons, que aprendemos tudo direitinho. Mas, agora, no fim e começo de tudo – porque todo fim é, na verdade, um grande começo – acaba surgindo uma nova pergunta: convencemos os outros. Isso é fato. Mas, e nós? Do que estamos convencidos?

Sempre escutamos que não há nada mais difícil do que convencer um publicitário de algo. Porque ele é treinado todos os dias a convencer, como se estar convencido fosse algo reservado apenas para o nosso público consumidor, não para nós. Esta pergunta veio a calhar no dia de hoje, então. Estar convencido está muito longe de ser algum sinal de fraqueza ou de que não somos vacinados pela agulha hipodérmica. Não tem nada a ver com não ser atingido pela nossa própria criatividade. Não. Estar convencido de algo é simplesmente acreditar que existe algo tão grande e valioso que vale a pena viver por isso. Quem sabe estar convencido de algo, é imbatível em seus argumentos, porque não se preocupa em convencer ninguém de nada: ele já é e pronto. Quem somos afinal? Está provado que a questão é ainda maior: não basta apenas saber quem somos, temos que estar convencidos de quem somos.

Depois do dia de hoje, além nossos nomes e sobrenomes podemos assinar “publicitário”. Meu nome é Fulano de Tal e eu sou publicitário. Será, então, que isso responderia nossa pergunta? Sou um publicitário. Sou uma publicitária. Esse é quem eu sou. Então, se ao invés de “Fulano de tal, publicitário”, estivesse escrito, “Fulano de tal, médico”, ou “arquiteto”, isso mudaria quem somos? Não. Óbvio que não. O dia de hoje é importante, é um marco que mudará para sempre as nossas vidas em muitas coisas. Contudo, ele define para todos o que faremos, quais alguns dos nossos talentos e a nossa preparação. Mas além disso, por quê não, o dia de hoje também não pode falar de alma?

“Sua fisionomia anunciava sua alma.” Essa é uma das primeiras frases do livro Cândido, de Voltaire. Vou repetir: “Sua fisionomia anunciava sua alma”. Essa frase é perfeita para nós, que a partir de agora, dedicaremos nossas vidas a anunciar. De anúncio, senhores e senhoras presentes, nós entendemos. Basta um outdoor ou rede social e o anúncio já está veiculado. Mas, voltando para nós, o que anunciaremos pelo mundo a partir de nossa fisionomia? Simplificando: por fora, com o que falamos, vivemos, sorrimos, choramos, amamos ou odiamos, desfilamos pelo mundo, o layout da nossa alma. O que há por dentro. Ela, seja como estiver, é na verdade o que somos. Quem somos. E o que somos nunca será reduzido a uma coisa só. Além das dez coisas que sabemos e das milhares que não temos nem idéia do que se trata, nossa história só é possível e bela, porque por ela passaram várias outras histórias. Cada uma, com o que anunciava, deixa algo na nossa e assim vai. Por isso, hoje, olhando para cada pessoa que convivemos nestes quatro anos é fácil ver as transformações que elas fizeram em nossas vidas. Umas boas, outras nem tanto, mas todos vocês, formandos, fazem parte de minha vida e vice-versa. É. Temos grandes responsabilidades.

Para onde vamos? Mistério. Delicioso mistério. Uma coisa é certa: vamos em busca de nossos projetos e eles são muitos. Tantas coisas a serem realizadas. A partir daí, voltamos para a primeira questão: afinal, do que estamos convencidos? Nos falta abraçar um Sonho. Sonho é diferente de projeto. Um Sonho deve abraçar todos eles, deve estar em todos os projetos como o motivo de realizá-los. Não basta ter um Sonho, é preciso estar convencido dele e encarná-lo. Encarná-lo quer dizer fazer com que nossa fisionomia anuncie nossa alma, como diria Voltaire. Tudo se encaixa no final. Além de escrever bons textos persuasivos, seria um bom Sonho fazer poesia do marasmo vivido pelo mundo. Além de fazer os layouts mais bonitos, seria um bom Sonho azular tudo que é cinza, mudar, questionar, transformar. E que aqueles garotos que queriam mudar o mundo nunca, repito, nunca, terminem assistindo a tudo em cima do muro. Nós não fomos formados para ser platéia. Somos nós quem produzimos o espetáculo. Somos os profissionais da mídia, do palco, dos outdoors luminosos. Porque ser platéia da vida? Assistindo ela passar, o mundo se acabar como se nada mais estivesse em nossas mãos? Discordo. Tudo está em nossas mãos, basta sermos espertos, astutos e nunca perder a capacidade de Sonhar. Gosto da palavra Sonho porque quem já se acha realizado está fadado a uma monotonia muito chata, apática. Quem se diz sonhador sabe que mesmo no último dia de sua vida, ainda estará sonhando, buscando, querendo, transformando. Sabemos que agora, começando no mercado e em novos aspectos da vida, estamos na fase de plantar. Espero sinceramente que saibamos escolher muito bem o que estamos plantando. É bom lembrar que um Sonho por si só não pode fazer muita coisa. O coração por si só também não. Um Sonho no coração avassala o mundo. Por mais metódico e mercantilista que seja o apelo do mundo hoje, ainda é preciso coração, muito coração. Que não nos esqueçamos nunca disso.

Queremos agradecer também aos nossos queridos professores, pela paciência e competência. Aos nossos pais, pelo amor e doação e porque sem eles nada disso seria possível. Aos funcionários, que sempre zelaram pelo nosso bem estar, a Deus e a todos que tiveram um papal decisivo em nossa história, nosso muito obrigado.

E assim foram esses quatro anos. De muita convivência, de muitos debates sobre o comportamento do consumidor, sobre Habermas, sobre um tal de balde de prospecção cheio de P´s, sobre spots, jingles, artes, textos, criatividade, clientes, marcas, vendas, photoshop, corel, ilustrator, câmeras e parques 13 de Maio, Rua do Lazer e Açaí. EI, PSIU, MOÇADA, vamos fazer um brieffing? A moçada estava sempre junta, esperando o elevador, sem saber se vai tomar um suco ou um café com quê, fazendo frio ou calor, são filhos da PP, Publicidade e Propaganda, claro, que não são a mesma coisa. Como esquecer da casa azul, da Xerox das meninas, do sol do estacionamento, das horas nos estúdios de audiovisual com violões e pandeiros. Das horas na biblioteca, que quando via os estudantes de publicidade na véspera da prova, deveria dizer “que saudade!”. Que saudade. São muitas lembranças, coisa que carregaremos pra sempre. Alguns seguirão caminhos distantes, outros estarão mais perto, outros, talvez, nunca mais se vejam. Mas, bom mesmo é olhar pra trás e ver que tudo valeu à pena. Vai valer à pena se onde quer que estejamos, nossa fisionomia anuncie nossa alma e que ela seja mais luminosa que todos os frontligths do mundo. O que você está esperando? Sai logo desse sofá e garanta já o seu lugar.

Clarice Freire.

Cinco dedos.

Os vaga-lumes da cidadela já se confundiam com as primeiras estrelas do céu, ainda tímidas com os últimos raios da grande estrela que se ia embora descansar no Japão. O Sol descansa no Japão, me diziam. Imediatamente imaginava o grande Sol descansando em uma cadeira de praia ,de óculos escuros, protegendo os olhos de si mesmo e, provavelmente, comendo sushi.

Jardineira nova, cabelos no queixo e janela no dente. Cálida lembrança quente. Calada, era eu menina. Só não calava nunca a mente. Ali, mal era eu gente, tinha um mundo meu: efervescente. A grade de metal do terraço, na verdade, um desafio para escaladoras experientes como eu. Em segredo, claro. Segredo. As crianças sabem guardar grandes segredos. A eles, têm mais apego que aos brinquedos. Com os segredos, se defendem dos medos. Inimaginável o medo, por exemplo, de que me impedissem de escalar a grade branca de ferro, o pé de siriguela, o alto do tanque, a mesa amarela.

Cheiro de mato. Barulho na cozinha: panela, prato. Televisão, Gugu fala alto, alto. Junto com as estrelas tímidas, chega manso o sereno. Assustador esse tal de sereno. Minha avó me manda correr, fugir dele, parece veneno. Deus me livre topar com esse tal de sereno. Corro pro terraço á porta. Tiara nova, blusa nova, sapato novo, combinando com a jardineira nova. Hoje, nenhuma moleca no mundo era mais bonita do que eu. Impossível. Eu tinha uma velhice nova: sinal de poder. Era meu aniversário, claro. Ganhava mais um ano de importância, quase uma adulta. A idade? Não importa, tinha a maturidade. Não falem comigo que me cansa. Tem gente que é tão criança.

As flores que voinha planta tem bolinhas de sereno (gotas de veneno!). Que tédio. Tudo é tédio até os parabéns, onde sou coroada diante de todos como uma quase adulta, muito importante. Preciso falar mais sério. Impressionante. Ele chega, devagarzinho. O vejo. O coração pula de leve. Postura, ereta. Ele que me enxergue. Ele vem sorrindo, fica na ponta dos pés para alcançar a minha enorme altura. Claro, para isso, fica de joelhos. No nível do meu rosto, me olha sorrindo.

-Eita, tinha, tá uma moça enorme, né?

Eu o encaro superior, soberana. É isso mesmo, estou enorme…

-Me dê sua mão.

Olhando-o desconfiada, estico para ele minha mão, do tamanho do seu polegar. Ele conta dedo por dedo.

– 1, 2, 3,4… Cinco!!

Começo a entender. Sorrio feliz.

-Tinha, tu completou uma mão cheinha de dedos! Uma mão todinha! Agora já vai passar pra mão de cá, ó.

E puxa minha outra mão, que eu fecho em sinal de “zero”. Olhando-o. Duvido que o sereno podia com ele. O ser mais forte da terra.

Ele compara sua mão enorme com a minha.

-Imagina quando tu completar as duas mãos? Eita que eu tô ficando velho.

E ele sorri com a idéia. Eu também. Velho? O cavaleiro vencedor do sereno?

-Tais linda, puxou ao pai. Linda.

Com o peito inflado de orgulho, prepotência, soberba, vaidade e alegria capaz de explodir 50 Sois que estivessem escondidos no Japão uma hora daquelas, me desvencilho de seus braços tentando disfarçar o sorriso orgulhoso. Eu sou linda. Eu sou velha, eu tenho uma mão intera de dedos para contar de história. Olhando minha mão como quem olha uma medalha de honra ao mérito, eu saio de perto do meu pai para sorrir escondida de alegria. E, talvez, para ele não ser atingidos pelo amor incontrolável que saia de meu coração diretamente em sua direção. Tenho que protegê-lo. São muito frágeis, os adultos. Não suportariam os segredos.

Clarice Freire.

Riscos.

Ela gostava de ir ao viaduto todas as noites debruçar as sandálias surradas, lá de cima, para ver os carros passando. Dalí de cima pareciam mais manchas de luz cortando o cinza do asfalto. Faziam riscos debaixo de seus pés e ela imaginava se pudesse pular em cima de um ou dois deles. Surfista de riscos de luz. Cogitava se o riscos vermelho-amarelados a levariam consigo ao seu destino desconhecido. Desconhecido, portanto, aventura. Não que Nininha não convivesse desde sempre com o que não conhecia. Sempre foi assim. Nininha não tinha altura sequer para alcançar direito o vidro fumê dos carros que faziam vento de baixo pra cima do viaduto, ventilando seus dedos, fazendo bambear nos pés duros suas havaianas azuis e brancas. Ela já sentia que conhecia de tudo da vida. Difícil era novidade, difícil era aventura. A idéia do passeio naqueles riscos iluminados a animava todas as noites dali de cima do viaduto. Dali ela sonhava em patinar nos feixes de luz esquecidos pelos carros até a terra do nunca, quem sabe. Do nunca mais ter que esperar fechar o sinal, quando os riscos de luz se transformavam nos conhecidos faróis de sempre, como tudo que Nininha já conhecia na vida.

E Nininha descia o viaduto, colocava os pés no asfalto e voltava a vender bala no sinal. Fora da terra do nunca, os riscos eram outros.

Clarice Freire

Arranha-céu.

Na janela de um arranha-céu, ela arranha umas notas no violão. Mal sabia tocar.

Dó. Sol. Fá.

Dó. Sol. Fá.

Os dedos doem e a língua já está para fora pelo esforço para coordenar as notas arranhadas e a velocidade mal treinada de seus dedos fracos.

Ela pára. Respira. Porque não nasceu sabendo? Olha pelo enorme vidro da janela todas as pequenas luzes acesas nos outros arranha-céus a sua volta. As janelas piscam para ela. Acendem e apagam sem parar, em sinfonia. Ela pisca de volta…o que elas querem dizer? Ela acorda de seus devaneios e volta ao violão.

Dó. Sol. Fá.

Dó. Sol. Fá.

De repente, uma nota aguda perfura o vento poluído por buzinadas e aceleradas esfumaçadas.

Lá.

Ela para. Procura. Mas são milhares as janelas e as luzes não param de trocar de lugar.

Dó. Sol. Fá.

Resposta:

Si. Mi. Lá…

O violino não desafina, é seguro e contínuo, encantador. Ele também não para. Faz a base perfeita para seu violão vacilante continuar. Ela continua. Agora, os dois tocam juntos. Por mais que ela procure, não consegue discernir de onde vem o tal violino.

Ré.

O acordeom veio de outra janela misteriosa, começa a tocar melodiosamente belo, fazendo coro ao violino e ao violão no meio da noite. Ela está nervosa, mas em júbilo. Nervosa porque não quer errar as únicas notas que aprendeu e atrapalhar a orquestra recém-formada. Dó. Sol. Fá. Dó. Sol. Fá. Si. Mi. Lá.Ré.

Eles param.

Ela para e se debruça quase caindo pela janela, procurando os músicos. Nada. Só as luzes oscilantes das janelas.

Uma janela aplaude. Depois outra, e outra, e outra, e outra. Aplausos arranham o céu cheio de fuligem. Arranham o céu por entre os arranha-céus que esconderam os músicos da menina, que, com o coração aquecido, volta para o quarto. Puxa um pedaço de papel e escreve: “Do SoFá, saí, para tocar. Dó me deu da SI(ci)dade sem Sol. Mi(e) fui até Lá, na janela e com o som das notas sem-dono, lembre. De Ré-começar sempre. E nunca parar.

De tocar”.

Pela janela,

O papel,

Voou ao léu,

Arranhando o céu.

Clarice Freire

Imunidade.

– E ele anda sempre assim, em todos os lugares?

– Sempre.

– Mas como é que pode? – indagou ele descruzando as pernas e virando para encará-la. Incrível o efeito que fazia o “ele” em questão em seus olhos.

– Você não sabe de nada, não é? – não, ele não sabia de nada perto dela.

– Sei sim.

– Ele é muito maior do que você está vendo. Só fica assim pequenininho porque está muito longe.

Na mesma hora ele junta o polegar e o indicador, fechando apenas um dos olhos. Ele cabia direitinho entre os dois. Como podia ser assim tão grande como ela dizia?

– Ele não cabe entre seus dedos, bobo. Já te disse. Se você fizesse isso de verdade, ia se queimar feio.

– Ele também queima? – o menino se assustava cada vez mais com as revelações dela. Como era inteligente. Como sabia de tudo! Ele seria capaz de fazer perguntas o resto do dia só pra escutar suas explicações.

– Claro que queima! Vai dizer que você não sabia que ele é feito de fogo? Só fogo, em milhares de explosões, a galáxias de distância. Ele não passa de uma bola de fogo. Ou melhor, de uma estrela gigante.

– Estrela?! De dia?! – agora ele a tinha pego – impossível! Você não sabe que as estrelas só aparecem à noite? Dãã!

Ela o fitou impaciente e divertida ao mesmo tempo. Por que eles demoravam tanto para crescer?

– As estrelas estão no céu o tempo todo. De dia e à noite. A diferença do dia e da noite é que, como Ele é muito maior que as outras, durante o dia, sua luz ofusca a das estrelas. Aí não dá pra ver as menores. O Sol é muito mais forte. Você já tentou acender uma lanterna com a luz acesa?

– Já.

– Fazia diferença?

– Não.

– E à noite? – ela se deliciava com sua superioridade intelectual.

– À noite minha lanterna é capaz de espantar qualquer monstro no quarto. – disse orgulhoso o menino, que guardava embaixo da cama sua arma mais poderosa contra barulhos no armário.

Monstros no quarto? Eles realmente não crescem nunca.

– É a mesma coisa com as estrelas. De dia, com uma luz tão forte, elas não aparecem. Mas basta Ele se esconder, elas se acendem brilhantes, iluminando o céu.

– Que egoísta, Ele. Quer aparecer mais que os outros.

– Nada disso. É por isso que Ele se esconde sempre. Se não escurecesse, as estrelas não teriam a chance de brilhar também e nós nunca saberíamos que elas existem.

Silêncio. O menino pensava no que escutou ainda olhando para o alto. De esguelha, se aproxima dela no gramado onde os dois estavam deitados à sombra do pé de seriguela. Ela nem, nem.

– Entendi. Mas ainda não faz sentido.
Ela revira os olhos incrédula.

– O quê?!

– Mesmo de dia, seus olhos brilham como as estrelas à noite. Você é imune ao sol?

pergunta sinceramente o menino.

Ela, muda, não tinha resposta e volta a olhar o céu.

Incrível como eles crescem de repente.

Clarice Freire