A Pressa e o Coração Quente.

O post de hoje não é um conto, nem poesia, nem história inventada. Pela primeira vez eu quero falar de mim mesma, de algo que acabou de acontecer de verdade e parece um conto, cheio de poesia ou história inventada.

Hoje, chegando ao elevador da agência, preocupada com a hora e pensando em mil coisas ao mesmo tempo, ultrapasso duas pessoas que caminhavam tranquilas ao celular e me deparo com dois senhores de mais ou menos 80 e 90 anos cada um, esperando na porta.

Conversando lentamente um com o outro, não perceberam o elevador chegando. Eu, apressada como a minha geração, fiquei impaciente, esperando que vissem a chegada do elevador. Eles continuavam conversando sobre algo como “não existe isso de destino, a pessoa é quem escolhe…”

Eu, que não sei esperar como a minha geração, disse um pouco irritada “senhor, o elevador chegou”. Eles se entreolham sem pressa e um, com chapéu de praia apesar da chuva, se assusta: “Chegou!”

A porta, pesada. Ele, já sem tantas forças, tenta abrir com dificuldade e o outro me impede de me colocar rapidamente à frente para ajudar – ou para ele abrir logo- e os dois fazem como quem finalmente vão entrar no elevador.

A essa altura eu já observava a cumplicidade com que se olhavam e fiquei imaginando quantos anos já devia ter aquela amizade e pelo que ela já deve ter passado.

Pensei em quanto tempo se pode viver ao lado de alguém, seja quem for. Ou como for.

Depois, lentamente, os dois se entreolham novamente como que assustados por uma lembrança repentina e param abruptamente.

Eu, que já estava batendo os pés no chão me pergunto “o que foi dessa vez?”

Eles se colocam um de cada lado da porta, como se tivessem ensaiado, se curvam galantemente e apontam com os dois braços para dentro do elevador, ao mesmo tempo.

“Primeiro as damas, não é verdade?”

Dizem sorrindo para mim.

“Uma moça bonita entra primeiro.”

Eu, entre a surpresa, vergonha, remorso e alegria, tento devolver um sorriso que vale pelos dois que recebi. “Obrigada!” digo sem jeito e entro.

O de chapéu de praia mal consegue conter a porta do elevador enquanto tenta me seguir para dentro. Dessa vez eu ajudo e aperto para eles o andar que iam juntos.

Fico ali ouvindo o restante da conversa sobre o destino e em se conformar com a vida. Ao sair, olho para os dois e apenas digo “Boa tarde”. Eles sorriem outro para mim.

Andando até a porta da agência, vou sorrindo sozinha e com o coração bem aquecido.

Aqueles velhos amigos me fizeram sentir como uma boba, uma velha ranzinza e uma dama “bonita assim” ao mesmo tempo. Só com dois minutos de gentileza típica daquela geração que não é a minha.

Eu não quero que minha pressa em viver seja uma questão de destino, no fim, é a gente quem escolhe.

Quero anos e anos de olhares cúmplices, lentamente gentis. Simples assim.

Clarice Freire

Roda Gigante e o Mar Ventania.

Lerê era um moleque daqueles que não adianta nem dar uma havaiana de presente porque ele não vai usar. Não por nada, é que não precisa. Ele já criou certo tipo de casco debaixo dos pés e qualquer coisa que não seja o chão debaixo dos dois é incômodo.

Lerê nasceu em Curva do Vento, perto de Botas Perdidas, um município ao lado de Lugar Nenhum. Daqueles lugares onde o “menino de Dinha” e o “Zé da Venda” ou “Tonho da Carne” são nome e sobrenome. Daqueles lugares em que TV ainda é a janela de casa e o folhetim se assiste sentado em uma cadeira na calçada, ao vivo, na vida de “Nininha Buchuda de Carlinhos, filho do deputado.”

Lerê trabalhou desde pequeno capinando mato, vendendo picolé , recitando cordel, carregando bolsa na feira de Curva do Vento. Por sinal, ventava muito em Curva do Vento e isso, Lerê adorava. Em dia quente, Lerê gostava de subir no pé de mato mais alto do Sítio Dona Liquinha e imaginar que estava andando de roda gigante. É que Lerê viu na TV da casa de Carlinhos, filho do deputado, um casal que rodava pra cima e pra baixo em uma dessas, toda iluminada, num vento que bagunçava seus cachecóis empacotados. Lerê pergunta:

-Carlinhos, é aonde que tem uma dessa?

-Em Paris, menino, te aqueta.

-Oxe, e é longe?

Ele não teria problema nenhum em ir a pé. Nem de sapato precisava.

-Tu sabe nadar, Lerê?

-Sei!

Lerê era o rei do açude Ventania.

-Tu ia ter que nadar um ano todinho pra chegar lá. Só chega pela água. Água do mar, visse?

Lerê, que nunca tinha visto o mar ficou preocupado. Desanimado nunca. Começou a treinar todo dia no açude Ventania. Um ano nadando, com uma jangadinha pra descansar, ele chegava na roda gigante dessa tal Paris pra sentir aquele vento gelado no rosto. Virou o sonho de Lerê, que só fazia trabalhar dia e noite pra pagar a passagem para o litoral.

Um dia, Lerê varria o resto de feira no chão e viu chegar um parque mambembe que o padre da paróquia conseguiu trazer pra semana santa. Ele ficou doido de vontade de ficar ali pra ver os brinquedos, mas tinha que ir pra hora da missa ser coroinha. O padre prometia bolacha e café se ele ajudasse e fosse um bom menino. Como era economia pra passagem, Lerê ia, pensando no mar.

Quando saiu da missa, o coração de Lerê quase parou de susto. Uma roda gigante daquelas do município de Paris estava ali, linda, mais iluminada que o céu à noite, mais colorida que a feira, mais mágica que os filmes que via de espreita na janela de Carlinhos, filho do deputado. Era gigante mesmo, cabia o mundo de Lerê todinho nela. De túnica e tudo, ignorando os gritos do pároco confuso, Lerê correu para o travesseiro, pegou tudo que tinha juntado pra ver o mar e correu para o parque.

Quando chegou na frente dela, Lerê estancou. Parou e não conseguia sair de onde estava. O operador viu o menino de túnica, cheio de moedas nas mãos que chorava sorrindo vidrado na roda e não entendeu nada.

-Ei, moleque, tu não vai subir não?

Lerê olhou para o homem sem saber por que tremia tanto nas pernas.

-Vou não.

-Por quê? Tu não tem dinheiro que só aí? Tais com medo, é?

Riu-se o operador mais curioso do que divertido.

-Dá pra ver o mar lá de cima, moço?

-Vixe, dá não. O mar tá longe demais, coroinha.

Lerê foi embora decidido.

-Ei, coroinha, dá pra ver até o município de Botas Perdidas!

O menino guardou as moedas com cuidado. Pensando no mar.

-É pouco. Eu quero ver o mundo todo rodar.

Clarice Freire

Nova (e arejada) maneira de passear e a tendência retrô.

Sandorval vivia morrendo de saudade. “No meu tempo…” era seu começo de frase favorita, que tinha sido criança em 1965 e não via sentido nessa modernidade toda. Pra ele “touch” era “oxe” e “widescreen” era nome de whisky.

Sandorval morava em um Recife sem aquecimento global e sem uma prefeitura em que a grande obra é estressar as pessoas paradas por horas no trânsito da Rosa e Silva em um calor infernal ao sol do meio dia. Mas desabafos à parte, Sandorval era daqueles que não ligava ar condicionado porque achava um absurdo ter que andar de janelas fechadas e não respirar o ar puro da cidade e o seu cheiro de mangue beat. Tão puro que rendeu a Sandorval uma asma crônica e uma tosse de cachorro que ele não se livrava nunca. “No meu tempo, isso era poético. Vocês sabem a quantidade de poetas que morreram de tuberculose?” e seguida dessa frase inicial favorita, Sandorval mostrava todos os seus conhecimentos em tudo-que-todo-mundo-já-óuviu-falar-mas-não-tem-espaço-na-memória-pra-guardar e justificava sua tosse. Poeticamente falando, claro.

O fato é que Sandorval era daqueles amantes do famoso fusquinha, queridinho dos brasileiros e nem tanto da camada de ozônio (“…de quê? No meu tempo, ninguém inventava essas histórias”) e sonhava em um mundo colorido no qual todos voltariam a morrer por seus fuscas valorizando o ar puro da cidade, (na qual a grande obra também é assustar as pessoas porque a quantidade de buracos que se cai, dando aquele salto na beira do estômago em quem dirige é assustadora. Você fica quase sem respirar pensando que essa pode ser a última vez que seu carro sente uma brisa em movimento em seu para brisa. O pobre do fusca teria que aguentar o que não é mais compatível à modernidade dos seus amortecedores). Mas desabafos à parte, Sandorval esperava ansiosamente uma maneira nova (e arejada) de passear que não fosse no ar condicionado do carro modernamente sem graça, ou no shopping, ou no cinema, ou no restaurante, na doceria, na loja de roupas, na livraria, em qualquer lugar. Sandorval via sua asma crônica se adaptar fatal e nada poeticamente a aquele vento gelado e artificial entre quatro paredes.

Um dia, Sandorval cansou e, tomado por uma inspiração de fúria eufórica (“no meu tempo, a gente tomava uma atitude!”) foi até a garagem, trabalhou dia e noite reformando seu antigo fusquinha vermelho, lembrando de um antigo anúncio da Volkswagen. Saiu por aí com a nova (e arejada) maneira de passear com seu teto solar e virou tendência. Todo mundo adora ser retrô. Sandorval, o cara que a grande obra é inspirar as pessoas. Todo mundo agora tem um desses e pode, parado no meio da rua, conversar sobre o que quiser, sem se preocupar com o calor, ou ar condicionado, ou com a hora de não chegar em casa. Vamos falar do tempo?

Clarice Freire.

Desabafo de uma recifense que, às vezes, só queria voltar ao tempo sem tantos carros na rua. Nem buraco, nem(…)

E que isso fosse no tempo dela.

Depoimento de uma cega e suas cores.

Eu não vejo. É o que dizem. Nunca vi a cor de nada.

Na verdade, não sei bem o que é uma cor, nem como algo pode ter algo que não sei o que é, já que nunca vi.

As pessoas dizem – apesar de cega, escuto muito bem – que não acreditam no que não vêem. Ou que só acreditam vendo.

Eu me pergunto se eu decidisse fazer o mesmo, se conseguiria viver. Afinal, nada ao meu redor existiria, nem mesmo essas pessoas que me dizem que só acreditam vendo. Se eu não as vejo, elas não existem e elas se transformariam automaticamente em fantasmas com voz. Eu me divirto com a ideia. Enquanto me falam, penso “você é um fantasma. Por que dar ouvidos a você? Você não existe”. E em minha imaginação, toda aquela prepotência de quem só acredita no que vê se desmancha de maneira embaraçosa. Fico feliz que mesmo que enxerguem, em minha mente, não vêem nada. O que penso é invisível a todos.

Uns tolos.

Eu não vejo, é o que dizem. Eu vejo sim. Sou daqueles que nasceram com mais sorte que você, que enxerga para me ler agora.

Eu acredito no que toco, na textura das coisas. Eu acredito no que escuto, na música das coisas.

Eu prefiro minhas cores imaginadas, do jeito que as sonho, de acordo com as formas que toco e as notas do que ouço. Prefiro elas do que as suas viciadas, acostumadas. As mesmas cores todos os dias. As minhas cores mudam diariamente, de acordo com minha imaginação.

Por isso, se a voz vem de dentro, de fora, do céu, da terra, ou de um rádio velho, eu não sou preconceituosa. Ouço todas com igualdade e acredito no que eu escuto.

Por isso, eu vejo o coração, porque conheço bem a sua voz.

E você não.

Clarice Freire.

O Segredo.

Ele passou a vida inteira guardando o segredo. Era o que havia de mais escondido, o que se oculta à vista. Ele não contava a ninguém. Era um segredo que a ninguém deveria ser dito. Secreto. Confidência. Segredo confidencial. Ao longo dos anos assumiu um ar de chave e fechadura que só tem quem merece ou por falta de escolha. Levava enterrado em si aquele sentido oculto que ele via como um fantasma em tudo que fazia, ou dizia, ou com quem encontrava. Mas ele não podia contar a ninguém. Não podia. Se contasse, deixaria de ser secreto, não seria mais segredo nem oculto. E o que diriam? Era seu maior temor.

Ele não se via mais sem aquele segredo. Era tão bem guardado que o segredo e ele, ele e o segredo já haviam se fundido em um só. Ele já não sabia mais quem era ele, quem era o segredo. Começou a ficar nervoso, noites em claro, desespero. Antes de dormir, todas as noites, contava o segredo na frente do espelho para si mesmo, quem sabe assim dividia por fim quem era quem e o colocava de volta de onde veio: no escondido. “Vou levar para o túmulo”, sempre repetia. Agora ele começava a temer que isso fosse um tanto precoce, pois o tal segredo grudou por dentro de uma forma que ele pensava poder sufocar a qualquer momento. Ou pior: contar a alguém. Não. Não podia. O segredo é dele, é exclusivo, é oculto, é o único lugar que só ele visita, só ele conhece, só ele abre e fecha. Ou ele agora pertencia ao segredo? Ele não sabia mais

Ia enlouquecer.

Um dia, em um surto psicótico secreto, não suportou mais o segredo ou o segredo não o suportava mais e levantou-se da cama do jeito que estava. Correu. E os conhecidos, o que diriam? O que pensariam? O que responderiam? E os que ele desconhecia? Enquanto corria como um louco, esbarrava em rostos que nunca viu e que pareciam saber de tudo. “Eles já sabem”, pensava. Cansou, não aguentou e em plena praça pública, gritou do alto da fonte que borrifava água pela boca dos anjos gordos:

“Eu sou a luz das estrelas, as coisas da vida, o medo de Amar!”

E esperou a resposta. O julgamento do mundo. O veredicto que tanto temia.

A resposta veio do louco, que assistia a cena abraçado à sua cachaça vencida:

“Ei! Toca Raul!”

Clarice Freire.

Foto: Chave da minha casa em Segovia – España.

Vaga Lumes.

Em uma cidade antiga, muito antiga, de quatro ou cinco casas antigas, muito antigas, ela resolveu fugir da cama.

Esperou anoitecer, até as paredes dormirem para sair. Correu como quem ama.

Se soubesse para onde ia, não seria ela.

Ela simplesmente foi, porque a vontade de sentir o vento frio no rosto,

A consumia feito vela.

O chão de pedra gelada nos pés sem sapatos. Nos olhos, o escuro.

Tinha alguma coisa naquela noite que a chamava pela janela e ela foi. Por cima do muro.

Se não tivesse ido, não seria ela.

Se não tivesse ido, seria morta.

Foi correndo pelo escuro sem saber aonde dava aquela viela,

E a estrada torta.

Tão escuro era, que esquecia como era a luz.

Corria, corria, corria e, de repente, esqueceu o que era o dia.

Percebeu aos poucos que a viela era tomada por vaga lumes, dezenas, centenas deles. Não eram capazes de alumiar a noite em dia com seu brilho raro.

Mas a fez lembrar,

Como era o claro.

E saber porque, afinal, fugiu da cama.

Era que a cidade não entendia, a agonia de quem Ama.

E da noite faz cantiga.

É que dizem que o Amor é coisa antiga,

Muito antiga.

Clarice Freire.

Antiquada assumida.

Sobre Dragões, Fogos e Pipoca.


Meu pai sempre dizia que aquela mancha na Lua era São Jorge lutando com um dragão.


Eu passava noites e noites tentando identificar um dragão naquela coisa indefinida e, ainda mais, esperava ver o tal cavaleiro correndo. Mas eles pareciam imóveis. Perguntando, meu pai respondia: “Você não sabe que a Terra gira muito rápido? Por isso dá a impressão que eles estão parados, mas não estão.”


Eu acreditava e ficava em uma eterna aflição. Morria de pena de São Jorge, que parecia não derrotar nunca o tal dragão enorme. E se um dia o monstro vencesse? Havia noites em que eu simplesmente esperava a notícia. O que aconteceria se o monstro ganhasse? Bom. Isso era óbvio. Ele atacaria a Terra e o mundo ia acabar. São Jorge era muito corajoso em nos proteger assim. Como as pessoas conseguiam ficar tão tranquilas se uma batalha estava sendo travada todas as noites no céu?


Até que chegou a noite de São João em Gravatá, depois dessa revelação seriíssima. Bombas, fogos de artifício, traque de massa, rojões, tudo me deixava de sobressalto.


Fiz minha pergunta mais inteligente. Daquelas que todos devíamos fazer com esse alvoroço que o mundo insiste em viver:


-Pai, pra quê isso?


A resposta foi incrível:


-Pra acordar São João.


Acordar?


-E ele está dormindo?


-Está, por isso soltamos fogos pra acordá-lo.


Nova aflição: o que acontece se ele não acordar?


Isso também era óbvio. A gente ficava sem São João, balão e pipocas. Pior. Podia ser que não amanhecesse. Ou que o mundo acabasse, claro. Essa é sempre uma alternativa.


Que injustiça! Enquanto um santo passava todas as noites em claro lutando bravamente para salvar a Terra, São João dormia, nos colocando em risco?


Nada fazia sentido.


O que importa é que naquela noite, São João resolveu acordar e voltei aliviada para casa. Cheia de pensamentos obscuros sobre dragões, Lua, Santo preguiçoso, pipoca e uma noite super mal dormida por causa dos fogos de artifício.


Voltando pra Recife, chego à porta do elevador e observo como ele sabe exatamente onde estamos, sobe sem errar pra onde o mandamos e se move magicamente. Medo. Já estava pensando nas olheiras para a próxima pergunta. Mas a curiosidade vencia. Sempre.


-Pai.


-Oi.


-Como é que o elevador funciona?


– Tem uns homenzinhos trabalhando lá no teto. Uns cem deles, tipo duendes. Eles escutam o que a gente tá pensando e puxam as cordas.


Choque.


-Mas isso não é trabalho escravo?


-Não, eles são feitos pra isso.


Agora sim eu estava chocada. E se eles não tivessem força um dia para segurar as cordas? Isso também era óbvio. O elevador cairia. Ou o mundo ia acabar, claro.


Em solidariedade a São Jorge e aos homenzinhos, evitava pegar elevador à noite, pra pelo menos alguns conseguirem dormir enquanto os outros puxam a corda. E eu fazia pipoca olhando pra Lua, esperando a notícia.


E pensar que eu adorava São João.


Faço pipoca em casa.


Clarice Freire.

O tempo se encontrou com o Vento na esquina do tédio.

A Postagem de hoje é especial pra a ilustradora e minha dupla de criação Priscila Lins, que me desenhou aí em cima (sim, sou eu!) e me pediu pra escrever sobre o tempo. Como presente se paga com presente, aí vai.

Obrigada Pris. O desenho ficou mais do que lindo.

O tempo se encontrou com o Vento na esquina do tédio.

O tédio era um cara vaidoso e tinha uma esquina só pra ele. Era tão dele que se recusava a olhar de lado, a sair, a limpar, a fazer qualquer coisa que o deslocasse daquela esquina sua e só sua.

O tédio percebeu assim que o tempo dobrou sua esquina que ele era um cara impetuoso, forte e disforme. Por onde passava, transformava tudo ao seu redor: as flores se despetalavam, os bebês ganhavam barba, as árvores viravam mesa e o velho saía jogando futebol. O tempo vinha distraído conversando com o Vento, velho amigo seu, sobre o universo. O Vento era colorido, serelepe. Por onde passava, descabelava tudo. O tédio logo percebeu que o Vento adorava mudar o curso das coisas. Por onde passava, os carros viravam na contramão.

Apavorado com tanto movimento, o tédio se sentiu ameaçado. Estava tudo tão tranqüilo em sua cadeira de balanço, em sua esquina tão sua, na paisagem conhecida. Se esses dois passassem por perto, seria o caos, o fim. Sua esquina poderia sumir. Todo mundo sabia que aquela dupla nunca foi amiga do tédio, o achavam muito grudento. Ele, então, resolveu se disfarçar.

Aproveitou o outono e transformou-se em uma árvore inofensiva, cheia de flores. Esperou.

-Quanta poeira. Você não passa por aqui?

Perguntou o tempo ao Vento.

-Confesso que não tinha visto esse lugar.

Sorrindo, o Vento soprou. A poeira foi embora, mas a cadeira de balanço não balançou e a estranha árvore de flores sequer se mexeu.

O tempo, experiente,

Reconheceu rapidamente,

Quem se escondia.

O Vento, inteligente,

Entendeu subseqüente,

E já sorria.

Juntos, sopraram e passaram,

Na esquina fria.

Cazuzeando transformaram,

O tédio em melodia.

Clarice Freire.

A história de Djalma.

Um pequeno tumulto se formou na esquina. Pessoas apontavam, outras se esticavam, todas cochichavam o ocorrido.

– O que foi que eu perdi? – perguntou Djalma.

– Onde você estava?Você perdeu!

– O quê?! – curioso como ele, Djalma já estava desesperado.

– Ah, cara, melhor eu nem te dizer.

– Dizer o quê? Eu já tô ficando nervoso!

Todo mundo sabia que Djama era fraco do coração. Por precaução, seu amigo calou-se imediatamente. Melhor calar. Tudo pela saúde de Djalma.

– Nada não, Djalma. Calma, relaxe. Por que você não se senta?

A essa altura Djalma já procurava desesperadamente indícios de tragédia. Tia Guida, coitada! Não, mas essa já partiu faz tempo. A casa, o cachorro, o fogão…o ferro! Sabia que tinha esquecido o ferro ligado! a essa altura já perdera tudo que tinha e seus amigos o preparavam para o choque. Totó! Ele gostava tanto de Totó!

– Podem me dizer, eu já sei.Disse Djalma resignado.

– Já sabe?

Todos se entreolham nervosos. Se Djalma souber pode ter um piripaque alí mesmo. É melhor enganar por enquanto. Ganhar tempo.

– Não, Djalma, não é o que você tá pensando não.

– Não?!

Djalma busca uma segunda opção de tragédia.

Perdeu o emprego. Só pode ser. Bem que ele achou aquela frase do seu chefe muito enigmática no fim do dia “A gente se vê amanhã”. Quanta ironia. Quanta cara de pau. Nojento, safado. Ah, mas ele me paga. Está pensando que é assim? Oito anos de dedicação ao escritório e é assim que agradecem? Não. Não é assim que se trata Djalma. Não quando ele trabalha de sobreaviso. Não quando tem amigos como os dele que o avisaram com antecedência. Amanhã mesmo ia chegar com seu discurso preparado para seu chefe. Ah, ele ia ouvir, ia ouvir poucas e boas.

Mas por que esperar? Quem ia fazer uma surpresinha agora era ele. Djalma. Ia dizer tudo que estava entalado todos esses anos. E ia ser agora, no fim do expediente, na hora do tchalzinho. Agora mesmo.

Djalma se levanta decidido. Agradece a amizade e cuidado dos amigos e segue direto para o escritório. Ainda bem que seus amigos o avisaram antes.

Os amigos ficam aliviados.

-Gente boa, o Djalma. Compreende nosso cuidado com a saúde dele, coitado. Todo mundo sabe que é fraco do coração.

A multidão se dispersa e o gato atropelado espera o caminhão de lixo no fim da noite.

Um motoqueiro desligado jogou o pobre felino pelos ares, formou até platéia de gente curiosa com o miado desesperado do gato em seu último suspiro de vida, restando apenas seu cadáver inerte no chão.

Era realmente uma cena muito forte para o coração fraco de Djalma.

Longe dalí, Djama entra no escritório.

Clarice Freire.

Findarnaval.

– Ei, mascarado!

A máscara vira o rosto.

– Sim, você.

A máscara coloca o indicador no peito, inclina a cabeça para frente, incrédula.

– Sim, claro que é você.

A máscara caminha até o Chapelão. Chuta serpentinas e confetes que já jaziam de ressaca no chão, no fim da noite.

– Te vi ano passado, passando pela Rua da Aurora, nessa hora, andando sem demora. Não te alcanço por um triz.

A máscara nada diz.

– Toda quarta-feira você é cinza assim?

A máscara faz que sim.

O Chapelão sente por aquela figura misteriosa e melancólica, estranho interesse.

– Por quê?

A máscara dá de ombros e se vai, chutando latinhas no chão.

O som do alumínio na pedra ecoa nas ruas velhas, na cidade antiga, na Linda paisagem para se construir uma cidade. O Chapelão se espanta em como a máscara é bela e se sente um tanto cinza também agora…para onde vão todas essas cores depois da festa?

Do mascarado, só o mistério resta.

E, na ponte, uma fresta,

Que dá para o Rio Papibaquígrafo.

Ah, quarta-feira ingrata…chega tão depressa!

Deixa a pressa,

Para o próximo Carnaval.

Quem sabe ele olha por trás da máscara e encontra olhos com vida, de cores infinitas, que não findam finitas na quarta-feira.

Depois da festa, da fresta, da pressa,

Continua, o Mistério, sendo,

O que sempre foi:

O que interessa.

Clarice Freire.

Foto: Veneza.