Este Texto Deve ser Lido sem Anestesia.

Nesses últimos tempos aconteceram uns contratempos que eu não tenho tempo pra contar, mas o fato é que eu praticamente quebrei um dente, mordendo com força demais. Pois é. Acontece nas melhores famílias de Londres. Eu não posso mesmo ir fish hunting com minha bow porque dói tanto. Por isso eu tive que levar umas dez anestesias pra poder aguentar as horinhas em que a dentista restaurava o estrago que fiz.

Vale dizer que eu também tenho pavor a agulhas. Pavor que eu digo é pavor mesmo: já desmaiei pra tirar sangue. Só de olhar pra agulhinha em minha direção, quase bati num enfermeiro que veio pra cima de mim, dizendo docemente pra ele “O QUE VOCÊ VAI FAZER COMIGO?” Como se estivesse em algum cativeiro e o sequestrador tivesse chegado com uma serra elétrica na mão.Acho que deu pra entender minha simpatia por agulhas.

Mas quando é com anestesia a conversa mudou. Percebi que adoro anestesia. É uma daquelas maravilhosas invenções do homem como o elevadore o ar-condicionado: eles poupam você da dor e do desconforto. Ela precisa da agulha, mas pensando que depois vai me livrar do sofrimento terrível de seja láo que for, disse pra dentista “não tem geral não?” e me impressionei comigo mesma, que mesmo com o coração acelerado quando via agulhinha se aproximando, ficava aliviada: não ia sentir nada depois.

Com isso acabei pensando sobre o mundo, que a meu humilde olhar, gosta muito mais de anestesia do que eu. As pessoas andam se anestesiando a todo custo, buscando justo esse “não sentir” tão cômodo e maravilhoso. Não sentir é a pedida do momento. Eu me envolvo com alguém até onde me é conveniente, mas não preciso sentir nada por ela. Eu trabalho porque estudei anos numa faculdade, tudo com um “para quê”, mas o “porquê” vaga anestesiado. Filmes anestesiam, músicas anestesiam, minha querida publicidade anestesia com promessas de felicidade em dez vezes sem juros. É difícil saber o que se quer da vida em uma geração que só quer tchum e tcha* e nem a anestesia fazendo efeito a gente sente.

E o verdadeiro sentido das coisas fica dormente, dormindo. Apalavra “sentido” já fala por si mesma. Sentido. Já foi sentido antes. O sentido é justamente o porquê. Anestesia, por sua vez, vemdo grego antigo: “ausência de sensação”; perfeito,não? Pensar no motivo de fazer as coisas não dá uma sensação, dá milhares e ao mesmo tempo: é melhor seguir anestesiado. Problema: anestesia passa. E por experiência própria, não é muito agradável. Tudo que foi feito ali deixasuas marcas e quando passa o efeito do anestésico, lá vem a dor tenebrosa. E aí ou se lida com ela ou…se anestesia de novo. Simples assim.

Assim seguimos anestesiando nossas coisas incômodas, aquela senhora incômoda na rua,

aquela criança com fome que incomoda na janela

,aquelas milhares de horas sem fazer nada incômodas, aquele incômodo “tem alguma coisa errada mas eu não posso fazer nada”. Apagamos o“in”, ficamos com o “cômodas” e está tudo certo.

Ultimamente tenho preferido tirar os incômodos debaixo da cômoda pra bater o tapete no sol e pronto. Sem anestesia se acorda para o dia. Quem acorda, não passa nulo por essa vida tão apressada de passar. “Dor dá e passa” já diz a minha vó. A vida passa e passa. Queria olhar pra trás lá na frente, sentindo todas as artrites que a velhice me der com uma sensação boa de que senti demais. Senti tudo. E sei qual é o gosto, a cor, o cheiro, a graça e a desgraça das coisas.

Clarice Freire

*nada contra quem escuta o tchum e o tcha. De verdade. Foi sóum bom exemplo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *