Mãe, fugi com o circo.

Sempre tive vontade de voar. Tive vontade é eufemismo. Eu morro de vontade de voar. Todos os dias de manhã, meio dia, seis da tarde, essa vontade vira um desejo devastador. Vira uma obsessão. Na verdade eu já negociaria que o meu carro, o meu ônibus, ou eu mesma voasse e passasse por cima daquele mar de carros ranzinzas que se emparelham no trânsito da minha querida cidade. Confesso que também penso na saudade de quem está longe, nem só de engarrafamento vive a vontade de voar do homem, é verdade. Ah, se eu voasse. Quando era pequena só queria mesmo sobrevoar a Serra das Russas, no caminho de Gravatá, acompanhando o carro dos meus pais, porque claro, desde pequena conheço bem meu senso de orientação e sabia do risco de me perder no caminho. Teria que seguir o carro de cima quando fosse pra casa da minha vó voando. (Imaginei agora a minha vó voando, pausa, rapidinho. P.S.: eu tava falando de mim). Senão ia bater na Rússia, não nas Russas e, pelo meu senso de orientação, não saberia voltar, nem sabia falar russo. Vamos evitar problemas.

Sempre quis dançar bem, mas o talento também não me ajudava nesse quesito. Observava as bailarinas que tem graça, beleza, flexibilidade, desenvoltura, só a Claricinha que não tem. E quando as minhas amigas dançavam e faziam piruetas na ginástica eu aplaudia entusiasmada (ainda aplaudo, ok) de admiração.

Coragem. Sempre quis ter litros de coragem. Inclusive esse era meu apelido na fisioterapia (sim, meu joelho é uma droga), na natação (em dias de chuva, eu tinha esperança do meu pai me liberar de acordar tão cedo. Pedindo, ele perguntava se a piscina estaria molhada demais pra mim. E lá ia eu, nadar na chuva, e não podia nem ir voando). Coragem era meu apelido e hoje, algo me diz que eu conheci muito cedo a ironia.

Nessas horas eu queria fazer a piscina desaparecer. Ou meu pai (eu sei que você vai ler isso, mas perdoe o rancor infantil de aguém que APENAS não queria nadar na chuva).
Me admiro com os domadores, atiradores de facas. Hoje eu admiro a coragem de quem sabe domar leão. Nunca controlei meus peixinhos suicidas, mas aprendi a domar leão também, é verdade.

Um pouco de magia cai bem no dia. Coçar o nariz e arrumar a bagunça, qualquer tipo de bagunça, qualquer uma mesmo; poção do amor (ui!), voar (eu disse que era obsessiva), invisibilidade. Eu queria ser mágica também.

É fácil existir, vale à pena se você conseguir fazer alguém rir. Nessa hora relativiza-se tempo e espaço.

Eu queria ser palhaço.

Querendo tanto, fiquei sem saída.

Essa é minha carta de despedida,

Da vida sem graça. Vou sair, cantar, lançar um disco.

Eu vou mesmo e arrisco.

Mãe, adeus,

Fugi com o circo.

Clarice Freire.

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