Chaveiro.

–        Como, menina?

–        Eu já disse. O senhor entendeu. Eu pago bem.

–        Mas eu não entendi.

–        Como não entendeu? É o melhor chaveiro da cidade. Eu já disse que posso pagar. Eu quero uma chave com cópia extra para o meu coração, por favor.

O homem viu que tinha entendido certo e parou.  Resolveu entrar na loucura de menina e divertir-se. Essas coisas que quebram a monotonia do centrão da cidade. Aquele calorão fazia dessas coisas. E ele que pensava já ter visto de tudo nessa vida. Enxugou os dedos sujos pensando no cigarro que o esperava no bolso.

–        E como eu chego lá?

–        Olhe pra mim.

O senhor olha agora um tanto cauteloso nos olhos da menina que o encara seriamente.

–        Está vendo? Meu problema é grave. Me desculpe, o senhor vai ter muito trabalho.

–        Hum. Estou vendo. É. Ele realmente é enorme, precisaria de uma chave compatível. Quão trancado ele está?

–        Totalmente.

–        E a outra chave, aonde está?

–        Eu perdi.

–        Não se preocupe.

–        Como assim?

O senhor pegou um papel rabiscou algo que a menina não conseguia ver.

–        Tome.

 

–        Arranje um desses na rua ou no céu. Um coração só se abre com Outro.

Clarice Freire.

Rabisco: aquele bloquinho de papel. tá acabando.

A Viagem de Chico Parte I

Animação linda sobre uma partida. Pra ler e assistir.

                                      Don’t think twice its all right. Bob Dylan. Pra ler e ouvir.

Vou começar hoje a história de alguém que saiu de casa, dividida em três encontros e três posts.

Primeiro encontro: sobre o caixeiro viajante e o ar inocente.

Chico nasceu em uma casa de madeira, à beira de um lago que não era famoso, em algum vilarejo sem fama alguma, portanto, nunca passava ninguém por perto de sua casa. Demorou alguns anos para Chico perceber que sua visão de mundo era um pouco limitada como as margens do lago em frente à casa onde cresceu com seus pais. Foi quando seu pai trouxe da cidade um rádio velho que, em dias de sorte, captava algumas notícias, radionovelas e músicas famosas. Famosas. “Agora, o mais novo sucesso do famoso Sttar Ringo!”

Foi quando Chico conheceu a fama.

Não pessoalmente, claro. Mas virou seu fã incondicional. De repente, sua casa de madeira ficou pequena para a sua vontade de ser famoso. Ele não tinha escolha. Tinha que partir. Quando ficasse famoso e fosse finalmente alguém, voltaria para buscar os pais. Pegou sua bicicleta azul e partiu. Não levou muita coisa consigo, ele sabia que teria tudo que quisesse depois da fama. Levou apenas uma foto do lago, uma câmera velha, presente do seu pai e cinco pães com queijo de cabra.

Dobrou quinhentas esquinas, se surpreendeu com a existência de outros lagos que não o seu. À beira de um deles, parou para descansar. Por alí, em uma bicicleta vermelha enferrujada, vinha uma figura estranha, cheia de bagagens nas costas. A figura avistou Chico de longe e começou a acenar. Chico olhou para os lados e viu que era de fato com ele que a figura falava. Acenou de volta. A figura pedalou até ele e parou sua bicicleta.

–        O que faz um jovem com esse ar inocente na estrada?

–        Eu não sou inocente.

–        Eu não estava falando de você, eu estava falando do ar.

–        Ah, bom.

A figura riu-se e Chico não entendeu do que ele ria. Já não sentia por ele muita simpatia desde que sobrou a esquina.

–        Então, o que um jovem com esse ar inocente faz na estrada?

–        Eu vou pra cidade. Eu vou ser famoso. Ainda não entendi por que o ar é inocente. Se ele é inocente, quem é culpado?

Agora Chico mostrava quem era o esperto da história.

–        Ser famoso? Sério? E o que você tem pra vender? Qual é o seu talento?

Disse a figura ignorando a sua pergunta. Chico calou-se abismado. Como não havia pensado nisso?

–        E talento se vende?

–        Tudo se vende, bebê. Tudo. É disso que eu vivo. Prazer, meu nome é Grinorepe. Eu sou caixeiro viajante.

–        E o que é isso?

–        Eu vendo coisas. Eu vendo tudo. Só não posso vender a fama que você quer. Eu também compro coisas. Você vai pra cidade, não é? Tem dinheiro?

–        Não.

–        Não tem nada?

–        Eu tenho isso.

E Chico mostrou a sua foto do lago, seus pães e a câmera velha. O caixeiro viajante colocou os olhos na câmera. Ele sabia bem que o mercado anda com tendências retrô.

– Eu compro essa sua câmera e você leva algum dinheiro pra cidade ganhar a sua fama. Topa?

Sem muita opção, agora que sabia que precisava de dinheiro, Chico vendeu o presente do seu pai.

–        Adeus, menino com ar inocente. Você tem muita estrada pela frente.

–        Ela vai acabar rapidinho quando eu for famoso.

–        Quando você ganhar seu sonho é que ela começa, ar inocente. A felicidade não está na estrada que leva a algum lugar. A felicidade é a própria estrada. Já diria Bob Dylan, conhece? Ele é muito famoso. E ele não tinha nenhum ar inocente.
–    Não, não conheço. Mas se você está falando do ar, ele não é meu, nem de ninguém. O ar é livre porque é vento. Ele não poderia ser do Bob Dylan. Então, claro que ele não tinha um ar inocente
–    Então o culpado é você.

E a figura se afastou balançando a sua câmera “retrô”.  Chico saiu com a impressão que o caixeiro não falava do ar quando dizia inocente. E seguiu pela sua estrada.

Clarice Freire.

A Viagem de Chico Parte III – O Ar Vivente.

Pra Ler ouvindo. Essa tem sido a tilha do meu ultimamente.

Mais leve com um ar transparente, Chico continuou o caminho. Agora sem sua câmera e os cinco pães. A consciência disso o deixou repentinamente com fome e a única coisa que ainda levava era a foto do lago. Queria que aquela estrada acabasse logo. Não entendia como aquele caixeiro viajante dizia que a felicidade está na própria estrada se ele só conseguia imaginá-la acabando depressa. Uma gota gelada espetou seu nariz assustado. O céu era ameaçadoramente cinza e, por isso, Chico apressou o passo.  À sua frente, havia três opções de caminho. Nenhuma placa, nenhuma seta, nada. Chico agora tremia de frio e de fome enquanto se perguntava qual das três era a estrada para a fama. Eram todas absolutamente iguais. A chuva que antes apenas ameaçava trovejou em gotas do tamanho de melancias, deixando Chico e as três estradas praticamente invisíveis. Invisíveis.

Mas isso não era o oposto do que ele buscava? Mas estava tão frio. O que era mesmo que ele buscava? Cinco pães com queijo de cabra, só podia ser. Mas tinha isso de sobra no lago, porque então havia se jogado ao desconhecido? Não fazia sentido.

Chico não sabia. Naquela hora, ele sentia que já tinha esquecido o motivo de ter se metido na estrada. Ele só via a chuva e o frio. Esquecido, era ainda mais difícil seguir, voltar, escolher, o que queria?

Essa é a hora que a gente fica paralizado. E foi assim que ele ficou. Tirou a foto do lago do bolso, olhou como se perguntasse para onde ir, mas as respostas não vêm assim tão fácil, ele também não sabia disso até então.

Pensou então que se ficasse alí esperando, a chuva poderia formar um novo lago. Os lagos já deviam nascer com uma casa de mandeira em anexo, era assim que fazia sentido. E ele voltaria pra casa. Resolveu esperar de pé.

Dias se passaram e a água já batia na cintura de Chico. A Chuva sim que devia encontrar felicidade na estrada, porque não parava nunca, pensou ele. A casa de madeira deveria surgir a qualquer momento.

Foi quando de longe, viu um candeeiro a gás flutuante na água. O candeeiro se aproximava e uma nova figura esticava-se curiosa na direção de Chico. Ele acenou freneticamente, com medo que estivesse mesmo invisível, mas, pelo visto, a nova figura o via, pois acenou de volta. Em pouco tempo o pequeno barco estava ao lado de Chico e, apesar do escuro, ele também conseguia ver quem o conduzia.

Uma figura delicada esticava a mão com uma enorme capa de chuva vermelha. Os olhos da menina reluziam feito fogo e Chico não sabia se era culpa dela ou do candeeiro. Ia descobrir um dia pra agradecer a um dos dois. Agarrou sua mão e subiu no barco.

–        O que um menino com esse ar Vivente faz no escuro?

–        Eu não me lembro. E me desculpe, eu devo estar mais pra ar morrente depois desses dias de chuva e de fome.

–        Não acho. Você já deve ter nascido com esse seu ar Vivente, porque senão ele teria se apagado na água, mas não apagou.

Sorriu a menina. Ele não entendia o que ela dizia. Mas já o deixou com menos frio. Ela o olhava curiosa.

–        Você por acaso se chama Chico?

–        Como é que você sabe?

Isso sim era um susto.

–        Você é muito famoso na estrada. Encontrei com duas figuras que só falam de você aos quatro ventos. Falam sobre um ar inocente e outro transparente. Até ganhei um pão com queijo de cabra de um homem melodioso. O troquei por esse barco quando começou a chuva, conheço bem o céu.

Chico a olhou em silêncio e algo fazia sentido dentro dele. Mas não lembrava o que era, só sabia que, de repente, a estrada tinha acabado.

–        Você acha que o ar Vivente fica melhor assim, ou apagado, menina?

Perguntou sorridente, na surdina.

–        Assim!

–        Bom, todo ar precisa de sopro, aprenda com quem ensina.

Pra Viver, uma estrada começa quando outra termina,

Você vem comigo acender o ar Vivente e incendiar qualquer esquina?

–        Eu vou. E essa estrada vai Viver em Luz dançarina!

–        Como é seu nome, menina?

–        Meu nome é Lamparina.

E Chico achou a felicidade na estrada.

Clarice Freire.

 

Uma Casa e um Dia.

Jon era apaixonado pela sua guitarra. Aonde ia levava a Vermelhinha com ele, desde moleque, quando a Vermelhinha era toda de plástico e acendia luzinhas coloridas tocando Beethoven. Foi um caso de amor desde pequenininho. Ele não resistia às suas notas distorcidas. Ela gostava mesmo de distorcer suas notas. Coisa de mulher. Ele entendia e gostava. Dizia pra ela: “um dia a gente se casa”.

Já Maria era apaixonada pelo seu Sonho. Quando era pequenininha, fazia todos rirem com sua mania de dizer que quando, crescesse, queria ser Sonhadora. Quando cresceu, se vestiu de Sonho e disse que era com Ele que ela ia passar o resto da vida. Ninguém entendia, mas ela sim. Dizia pra ele: “você é meu Dia e minha Casa”.

Todo mundo amava Ambrozina. Mas Ambrozina nunca amou ninguém. Só sentava de braços, pernas e cara cruzadas. Terminou que cruzaram tanto o seu caminho que ela entrou pra cruz vermelha. Rodou o mundo. Se casou com o trabalho e descruzou os braços pra cuidar de terceiros. E Ambrozina encontrou aí seu caso de amor, em vários casos complicados. Dizia pra eles: “eu passo o dia em tantas casas”.

Carla amava Max, Eduarda amava Eduardo.

Max amava Carla e Eduardo amava Eduarda.

Não importava muito se era desde pequenininho. Mas era daquelas coisas que começam até modestas, tímidas, mas que crescem tanto que não cabiam mais em casas separadas. Tiveram ter uma “casa comigo”? Pra caber a mobília nova. Diziam um para o outro: “casa comigo um dia?”

Estava lá todo mundo no casório. Jon tocou sua guitarra apaixonadamente enquanto a noiva entrava na Igreja e ele não se importava se estava todo mundo percebendo que seu mundo todo era a Vermelhinha. E só. Ela fazia uma marcha nupcial distorcida como ninguém.

Maria parecia sozinha alí, sorrindo radiante com os seus. Ninguém entendia que de sozinha ela não tinha nada. Mas ela entendia e gostava. Tinha levado o melhor Presente para os noivos.

Ambrozina também foi. Estava de dedos cruzados pra que tudo desse certo. O resto era livre e descruzado pra sempre, meio sem volta.

O casório não foi o mesmo, nem os convidados estavam presentes nessa ordem. Cada um é o seu. Mas em todo casório tem dos seus noivos, Jons, Marias e Ambrozinas.

E todo mundo estava casado alí. Cada qual com seus amores e em sua casa. Ou Casa.

É que um dia a gente casa.

Clarice Freire.

Isso é porque minha prima, uma das minhas primas/irmãs mais velhas desde pequenininha, noivou esse sábado e eu, a pior das manteigas derretigas e refogadas mais idiotas da Terra, fiquei vibrando de felicidade por ela. Naquelas horas que você começa a sentir velha e ninguém sabe, mas você gosta disso. E Duda, que passou dos tempos de macacão e Sonhar acordadas direito pro altar. E pra todos aqueles que também sentem que um dia acabam se casando. Não importa com quem ou com o quê. Não importa bem a sua forma de casamento. Importa o Amor que você dedica a ele. Ou a ela, no caso da guitarra de Jon. E se isso te transborda ou não.

É ou não é?

Mãe, fugi com o circo.

Sempre tive vontade de voar. Tive vontade é eufemismo. Eu morro de vontade de voar. Todos os dias de manhã, meio dia, seis da tarde, essa vontade vira um desejo devastador. Vira uma obsessão. Na verdade eu já negociaria que o meu carro, o meu ônibus, ou eu mesma voasse e passasse por cima daquele mar de carros ranzinzas que se emparelham no trânsito da minha querida cidade. Confesso que também penso na saudade de quem está longe, nem só de engarrafamento vive a vontade de voar do homem, é verdade. Ah, se eu voasse. Quando era pequena só queria mesmo sobrevoar a Serra das Russas, no caminho de Gravatá, acompanhando o carro dos meus pais, porque claro, desde pequena conheço bem meu senso de orientação e sabia do risco de me perder no caminho. Teria que seguir o carro de cima quando fosse pra casa da minha vó voando. (Imaginei agora a minha vó voando, pausa, rapidinho. P.S.: eu tava falando de mim). Senão ia bater na Rússia, não nas Russas e, pelo meu senso de orientação, não saberia voltar, nem sabia falar russo. Vamos evitar problemas.

Sempre quis dançar bem, mas o talento também não me ajudava nesse quesito. Observava as bailarinas que tem graça, beleza, flexibilidade, desenvoltura, só a Claricinha que não tem. E quando as minhas amigas dançavam e faziam piruetas na ginástica eu aplaudia entusiasmada (ainda aplaudo, ok) de admiração.

Coragem. Sempre quis ter litros de coragem. Inclusive esse era meu apelido na fisioterapia (sim, meu joelho é uma droga), na natação (em dias de chuva, eu tinha esperança do meu pai me liberar de acordar tão cedo. Pedindo, ele perguntava se a piscina estaria molhada demais pra mim. E lá ia eu, nadar na chuva, e não podia nem ir voando). Coragem era meu apelido e hoje, algo me diz que eu conheci muito cedo a ironia.

Nessas horas eu queria fazer a piscina desaparecer. Ou meu pai (eu sei que você vai ler isso, mas perdoe o rancor infantil de aguém que APENAS não queria nadar na chuva).
Me admiro com os domadores, atiradores de facas. Hoje eu admiro a coragem de quem sabe domar leão. Nunca controlei meus peixinhos suicidas, mas aprendi a domar leão também, é verdade.

Um pouco de magia cai bem no dia. Coçar o nariz e arrumar a bagunça, qualquer tipo de bagunça, qualquer uma mesmo; poção do amor (ui!), voar (eu disse que era obsessiva), invisibilidade. Eu queria ser mágica também.

É fácil existir, vale à pena se você conseguir fazer alguém rir. Nessa hora relativiza-se tempo e espaço.

Eu queria ser palhaço.

Querendo tanto, fiquei sem saída.

Essa é minha carta de despedida,

Da vida sem graça. Vou sair, cantar, lançar um disco.

Eu vou mesmo e arrisco.

Mãe, adeus,

Fugi com o circo.

Clarice Freire.

Este Blog abraçou a “Casa que o amor construiu…”



O Pó de Lua é o mais novo parceiro virtual da Casa Ronald McDonald RJ.       


A Casa Ronald McDonald-RJ acaba de ampliar seus horizontes no mundo virtual. A instituição, que hospeda crianças e adolescentes em tratamento contra o câncer no Rio, começou uma nova campanha na internet. Após ter lançado uma Fan Page no Facebook e revitalizado o Twitter, a CRM lançou uma ação junto aos principais blogueiros do país. O mote da campanha online será uma extensão do slogan tradicional: “A Casa que o amor construiu… a Internet abraçou!”. A expectativa é conquistar, cerca 1 milhão e meio de visualizações em blogs e sites desses novos parceiros.

A agência CMI, especializada em marketing digital, ficará responsável pela campanha, voluntariamente. Ela começou o trabalho fazendo uma listagem dos maiores blogs do Estado do Rio e mais influentes do Brasil. E o Pó de Lua foi um dos selecionados.

Sendo assim, aproveito a oportunidade para passar para vocês leitores, que a partir de hoje, abraço a CRM-RJ. Este espaço ganhará o selo de “Blogueiro Responsável” (alí do lado direito!) da Casa Ronald McDonald RJ e convidamos a todos para também abraçarem a Casa.

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Responsabilidade Social – Esse Blog abraçou a CRM-RJ  – Blogueiro Responsável

Carta Para Nina.

Faz calor. Mas eu estou num terraço de chão frio que equilibra o ar comigo. Está quente mas venta de leve nas folhas amareladas. Fico assistindo a janela como se fosse TV, em uma cadeira cativa, cativando suspiros que ninguém vê. Você sabe como sou melancólica às tardes, Nina. Comendo suspiros saidos do forno. O dia está um forno, com cheiro de fornada de pão, mas é amarelado e isso tem um lado tão gostoso.

Vai chover que eu sei. Eu sou do interior, eu sei das coisas. Por isso minha carta vai ser curta. Quando chove a varanda molha inteira e eu não gosto de escrever com o barulho da TV lá dentro. E o cachorro não vive sem a TV ligada, você sabe, Nina. Se não tem com o que se entreter, come todos os suspiros. Só escrevo na varanda. Será que dá tempo?

Como vai Nevinha, Lourdes, Oscar, Cabo Jaime? Nevinha ainda leciona pros meninos? Lourdes ainda costura os calangos na cadeira antiga? E Oscar, come? O Cabo Jaime ainda canta na rádio? Mande notícias pelo vento, por favor. Eu prefiro. As coisas por ele chegam mais arejadas e transparentes. Certifique-se que não vai chover, por favor. Você também é do interior e sabe das coisas. Se as noticias se molham e derretem, o que vai ser do meu relicário?

Eu vou bem. Já senti saudade, já senti ciúmes, já me senti sozinha demais, aí distribuí suspiros pelos cantos da casa. Já senti frio e fome também, mas fiz e comi suspiros pelos cômodos, como é cômodo comer essas delícias de forno! Agora estou bem.

Um segundo, está chovendo, vou desligar a janela. Me espere.

Voltei. Não tenho muito tempo, a chuva vai molhar a varanda. Vim só me despedir e pedir que você me mande farinha de trigo, por favor. Mas coloque num saco cheio, saco vazio o vento leva e não volta mais, você sabe, Nina. Aproveite e se encha de amores você também. Senão você não voa e vai morrer a pé. Estou avisando. Seu Euclides me disse que você anda amarelada.

Mande lembranças a Petronila. As sandálias de algodão que ela esqueceu aqui parecem nuvem e quase que eu as deixo sair pela janela. Peça pra ela vir buscar.

 Com amor e letra de fôrma,

Clarice.

Se meu chapéu de pena falasse.

Esse domingo fui almoçar com a família no Paço e, como todo domingo, estava acontecendo uma feirinha de antiguidades.

Lá, olhava os objetos um a um. Coisa antiga, velha, usada, reutilizada, repassada. Um ventilador enferrujado, uns anéis extravagantes, uns chapéus anos 20, todo tipo de santo barroco, de barro e rouco.

“Se essas quinquilharias falassem”, penso eu enquanto me achego a uma barraquinha que vendia soldadinhos de chumbo e moedas velhas, de todos os tamanhos.

Uma senhora de óculos escuros e penas na cabeça (sim, penas na cabeça) para ao meu lado e segura um soldadinho. Olha para o nada e começa a falar. Como só eu estava perto para ouvir, julguei que era comigo que falava, prestei atenção.

-Eu fiz uma cirurgia, sabe.

Fala a senhora. Claro, doença é o primeiro assunto para se iniciar uma conversa com uma estranha atenta.

– Passei meses de cama por causa da garganta. Um horror. Por isso parei de colecionar soldadinhos de chumbo. Eu adoro soldadinhos de chumbo. Meu pai trazia de bolo lá pra casa, pra o meu irmão e eu roubava todos. Hoje tenho mais de cem guardados e não compro mais, desde a minha cirurgia. Meu netinho tem quatro meses agora, não vou botar na mão dele minha coleção. Mas já já passo pra ele e ele passa pros filhos e é assim, né?

-É. Adoro soldadinhos de chumbo também.

Respondo.

Chega mais um casal.

-Olha, Dalva, você lembra dessa moeda? Tenho muitas dessas em casa!

Chega um senhor de bengala.

-Moço, aonde você arrumou esse rádio? Meu pai tinha um em casa, fiquei horas olhando para ele de longe, como é lindo!

Chega uma senhora de muitos colares e saia longa. Também se dirige a mim, dessa vez sem história de doença. Viu que eu olhava uns brincos.

-Um brinco desses não cabe mais pra mim. Fica ridículo. Você precisava ver como eu era. Eu ia pra muitos bailes com uns maiores que esses, chamando atenção.

Comecei a achar que aquilo era uma feira de antiguidades para mim, que parecia olhar peças da produção de arte de um filme de época. Para outros, era um álbum de recordações. Aquelas pessoas se vestiam à carater: brilhos, metais, anéis, colares, penas na cabeça (sim, penas na cabeça. Um chapéu de pena, na verdade). E eles se divertiam perdidos em suas lembranças a cada objeto sem dono à venda.

Já foram donos de pelo menos alguma coisa igual a aquelas dalí, anos atrás. Por isso tinham tantas histórias para contar, tanta coisa pra contar, difícil é alguém parar para ouvir.

Me senti fora de época e fui embora.

“Se essas quinquilharias falassem”, eu tinha pensado. Elas tem voz, sim.

E não é que falaram comigo?

Clarice Freire.

Foto: Paço Alfândega – Recife.

o Sol e a cadeira de balanço.


Começa hoje uma pequena série sobre o Amor em 3 atos, na visão de três crianças apaixonadas.

A cadeira de balanço rangia de frente para a enorme janela. A neta desenhava gotas d’água coloridas no chão enquanto a avó assistia a chuva sem cor envernizar desigual o vidro que dava para o jardim.

– Vó.

(Cadeira nhenc, nhenc).

– Olha as minhas gotas de chuva. Tem de toda cor.

(Nhenc, nhenc).

– Vó, eu sei desenhar o céu, ó.

(Cadeira nhenc, nhenc).

– Eu acho que estou apaixonada, vó.

(Cadeira quieta).

– Por que você fez isso, minha filha?

– Não fui eu não.

A neta desenha um sol amarelo apesar do cinza lá fora.

– E quem foi?

– Foi Ele.

– O dito cujo?

– Não, Ele.

E mostra seu Sol amarelado.

– O que é que um Sol tem a ver com você fazer uma besteira dessas, menina. Eu já disse que se apaixonar é burrice. É confuso demais.

– Tem tudo, vó. Toda vez que o Sol bate nos olhos dele, meu coração gela. Eu acho engraçado. O coração gela e o Sol é quente. Acho que é por isso que a senhora acha o Amor confuso.

E a menina foi brincar no jardim despreocupada. A cadeira continuou quieta.

Clarice Freire.

O Tampa de Crush.

O Tampa de Crush se achava o máximo. Resolvia tudo sozinho, era popular e bonitão.

Um dia, ele conheceu A Bala que Matou Kennedy. Essa já era mais discreta, sabia a hora de entrar nos lugares mas quando entrava, nunca passava despercebida, sempre causava alvoroço.

Ele achou que ela era a tampa da sua panela: tão boa quanto ele, assim tão importante. Logo na primeira saída se apaixonaram perdidamente. Mas logo também na primeira saída perceberam um problema terrível.

Tantas qualidades de ambos nunca cabiam em um só lugar. Era informação demais. Eram virtudes demais, beleza demais e o carro não comportava, nem o cinema, nem o estádio de futebol, nem sequer as ruas da cidade.

O Tampa de Crush se entristeceu ao ver que A Bala que Matou Kennedy chorava desconsolada quando terminaram. Decidiram não mais estar “em um relacionamento sério”.

O tempo passou e o Tampa de Crush nunca encontrava ninguém pra ele. Era só em seus próprios reflexos no espelho, ria-se de si mesmo em suas piadas geniais, maravilhava-se a si e mesmo com suas histórias incríveis, não havia motivo para tristeza em tê-lo assim, só para si.

Só uma: ninguém pra curtir, compartilhar, seguir ou dar aquela cutucada de vez em quando. De que servia então, assim, ser ele aquele que é?

Em um dia de sol, Tampa de Crush resolveu ir à praia, pegar uma corzinha e ali, à primeira vista, se apaixonou novamente. Era ela. Mais que o suficiente pra ele. Na verdade, perto dela, ele começava a se sentir um ninguém, pequeno, minúsculo, insignificante. Era desesperador para o Tampa e Crush, que nunca havia se sentido assim antes por ninguém. Tentava chamar sua atenção mas não via como, era grande demais perfeita demais, famosa, a única.

A última Coca-Cola do Deserto.

Tampa e Crush, do alto de seu bam bam bamrismo, dedicou o resto dos seus dias a um amor platônico pela Última Coca-Cola do Deserto. Justamente porque não conseguia, queria.

E porque não conseguia, cabia junto dela só em sua imaginação.

Em todos os lugares.

Clarice Freire.